Londres 27/09/2020
Nos encontramos em constantes embates.
Embates internos, embates externos, dúvidas, ou fugas das dúvidas, como tentativa de aliviar a pressão do não compreendido, daquilo que não é assimilado, do que parece impossível de ser administrado, de tudo aquilo que me é desconhecido e, portanto, evitado.
Vivemos em verdadeira guerra conosco mesmo. Por isso, tantos almejam a paz em si, sem, no entanto, conseguir atingi-la.
Nesse processo de encontros e desencontros, a vida nos propõe desafios que nos instigam, diariamente, a perceber o lugar em que estamos. Ela nos convida a olhar para as nossas percepções, nossos sistemas de crenças, ou para a própria descrença em nós mesmos. E nos questionar. Os desafios são chamados da vida para que a luz venha à consciência. Muitas vezes eles vêm até mesmo escritos em letras garrafais para que, na miopia nossa de cada dia, sejamos capazes de enxergá-las. São desafios que clamam pela atualização e ampliação dos pequenos feudos nos quais habitamos com pseudo domínio e inteireza – em uma fantasia de si mesmo – a persona idealizada do ego desconectada de si mesmo. Estes são territórios, cultivados com afinco, que propiciam ilusório conforto no anestesiamento do profundo autoesquecimento.
Na vida idealizada da sociedade moderna, seguimos o modelo-refém do ego adoecido. Nela, os problemas são, geralmente, tidos como algo a ser evadido. Nas personalidades frágeis e atormentadas, em constante fuga, o medo de olhar para si mesmo faz com que não percebam que os problemas são simples equações cujas respostas estão à espera das nossas singulares resoluções. Na matemática da vida, a cada hora que um problema emerge é como um mistério que nos cobra um posicionamento diante de sua origem, desenvolvimento e desenlace. É um sair do lugar sedimentado; é um deslocamento da nossa postura diante de nós mesmos e, consequentemente, diante da própria vida. É um resignificar daqui, é um reavaliar dali, aprendendo a agir em conformidade com a harmonia do todo universal.
No entanto, ao enfrentamos os problemas, a nossa postura é, primeiramente, sempre de dizer que é difícil. Quando não, muito difícil. Na verdade, esta fala revela a própria resistência do ego que não quer enfrentar e resolver o problema em questão. Usamos, com isso, a impossibilidade do enfrentamento como desculpa para não empreender o mínimo de esforço para sair da zona de conforto. Ou seria mais apropriado, talvez, chamar de zona do medo?
Na sombra da nossa inconsciência jazem rechaçadas, não apenas as imagens aterrorizantes dos passados obscuros do ser, mas também as virtudes em gérmen, a espera de serem aprimoradas. O medo aqui não é apenas o de olhar para o lado sombrio e obscuro que aguarda a sua libertação e acolhimento no próprio eu. O medo também não se secciona apenas no comprazer-se morbidamente com muitas das sombras, fazendo delas um satisfazer-se sórdido e egoístico, sádico ou masoquista, em um vai e vem do entre vítima e algoz – do bonzinho ao mauzinho. Esse paradigma herói-carrasco que carregamos dentro e que reflete o conflito entre a consciência de culpa e o dever essencial de cada ser, na sua capacidade espiritual mais plena. O medo que queremos ressaltar aqui é aquele que tenta escamotear a realização última – a das suas virtudes sublimes.
Pode parecer estranho dizer isso, num mundo de uma busca angustiante por realização, mas como nos escondemos de realizarmos a nossa própria singularidade!? E tememos.
E mais, o que sobra depois de um mundo achatado pelo identitário egocêntrico?
Esse paradoxo é o resultado de uma cultura escapista e do culto ao desejo pelo objeto, pela sensação, onde a reificação do ser torna-se inevitável no mercado de compra e venda. Quando os problemas surgem e nos pedem um pouco mais de entendimento para o que não está acontecendo, a nossa primeira reação é, porém, de dizer: está difícil. Uma reação previsível ao nível do ego, que teme se desidentificar, que teme se permitir expandir, que teme desconstruir a persona, a máscara, que teme deixar ver as ilusões que foram plantadas com afinco. Com vaidade demais para acolher as sombras, com receio demais para se autoconhecer, com ganância demais para renunciar aos padrões viciados, fundamentados nos prazeres imediatistas dos instintos primários do animal que ainda reside em nós. Quando dizemos está difícil, nos acomodamos nas resistências sem nos permitir o descortinar das possibilidades infinitas que jazem adormecidas, ignoradas dentro de nós mesmos.
Os problemas quando surgem diante de nós, são como testes, sobretudo, para nossa resiliência em torno do abandono de tudo o que não nos serve mais, de tudo que não é necessário-essencial à nossa viagem rumo ao encontro de nós mesmos. Uma viagem solitária e invisível e que, por isso mesmo, torna-se desafiadora, sobretudo, em um mundo onde se clama, constantemente, pelo seu lugar sob os holofotes da fama.
Os momentos de crise, contudo, são fundamentais no desvelar de novas paisagens e na consciência do abandonar aquelas outras que já não fazem mais sentido. Ou que, simplesmente, estão nos aprisionando sob uma ideia distorcida de liberdade. E a vida, como grande mestra, estará sempre nos impressionando com os movimentos que nos tiram da zona infantil e mimada, na qual desejaríamos para sempre viver, onde tudo e todos estão sempre a nossa volta satisfazendo os nossos caprichos sentimentais. Desaprendendo estes padrões, poderemos, assim, abrir campo para experienciar o sermos responsáveis pela nossa própria felicidade e saúde mental. Não ficando à mercê dos ventos tormentosos que assolam o deserto das emoções.
Mas para que esse campo possa autêntica e singularmente se estabelecer em nós, é preciso deixar de dizer que é difícil. É preciso quebrar a barreira, cruzar a fronteira. É preciso vencer os co-modismos que nos aprisionam na identidade de um grupo, que se esconde atrás de uma máscara arquetípica e que me faz parecer que está tudo bem. Falamos aqui dos modismos seguidos pelos veneradores do fanatismo egoico. Aqui se esconde o aprisionamento do é difícil, que, na verdade, não quer mesmo é sair deste lugar. Renunciar. Pois como diria o velho ditado: querer é poder! E não é o poder de dominar o outro com o autoritarismo típico dos modismos egoicos, mas poder de autorrealização, de eu posso permitir encontrar-me nesse estado de autorrealização.
Mas do que vale esse conceito no mundo atual em que vivemos?
Vende para quem? Glamuriza o que? Gera que tipo de prazer?
Conceitos estes da cultura do imediatismo e do não duradouro. Da felicidade instantânea, dos quinze minutos de fama, que depois que passam, acumulam um torpor anestesiante frustrante, gerador de angústias inquietantes e ansiedades constantes pela repetição daquela sensação fugidia e que não se perpetua jamais. Muitas vezes só aplacado, momentaneamente, com o uso das drogas, do álcool, do sexo, do trabalho ou do consumo, todos compulsivos e que deixam um rastro de vazio e incompletude. Nesse drama de buscas incessantes ocultam-se os prazeres duradouros, onde o ser só se realiza na lei universal suprema – a Lei de Amor. O amor que não é um sentimento, mas uma ordem. E para que toda ordem exista é preciso obediência à ela. Mas não a obediência daquele que se faz de tolo. Na etimologia da palavra, obediência quer dizer: saber escutar com atenção plena. E hoje? Eu consigo escutar com atenção plena? Ou apenas repito as mesmas frases feitas que meu corpo, condicionado pelos valores sem ética, formatou das ideias de conquista e brilho. E nesse vai e vem, nem percebemos que corremos atrás de sonhos que nem mesmo sonhamos. Tentamos conquistar ilusões de outros que nos convenceram de que estas eram a nossa própria forma de devanear. Ou de se castrar.
É preciso perceber que é na tarefa invisível que se esconde a verdadeira possibilidade do encontro consigo mesmo.
E essa é a grande conquista.
O medo, porém, de sermos nós mesmos, de sairmos do identitário, paralisa qualquer movimento ou ação de expandir. E o único propósito de estarmos aqui neste planeta é expandir as potencialidades espirituais que jazem em nós adormecidas. Isso é inevitável.
Deixemos de lado, então, esse tal de está difícil, quer dizer, deixemos de lado a preguiça e a voluntariedade da criança mimada que não quer sair da infância tardia, de que não quer perceber a vida como grande oportunidade de aprendizado e voluntariado. Percebamos em cada pequeno gesto, em cada pequeno movimento da vida a oportunidade de renunciar, a ocasião de testar a nossa resiliência, a capacidade de suportar, de exercitar a resistência moral e, sobretudo, de achar as alternativas resolutivas que permanecem desconhecidas de nós e em nós. De fazer o bem.
A vida é um constante reavaliar. Não se apegue às ideias. Aliás não se apegue jamais, pois todo apego gera sofrimento e todo sofrimento gera insatisfação. E toda insatisfação virá com a necessária desilusão.
Namaste
Flavio Graff
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