Londres 16/05/2020
Um aglomerado de acontecimentos, aparentemente fortuitos, banais, que se juntam ao que chamamos de acaso, que vão e vem sem muita lógica. Um turbilhão de fatos emaranhados que tentamos nos apegar, organizar, racionalizar, decodificar, memorizar ou esquecer – mas, sobretudo, dar um sentido. Uma sucessão de minutos, horas, dias, meses, séculos e afetos que se justificam pela ilusória linha reta de um tempo torto que nunca irá se alinhar. Uma quimera de ciclos. Um aniversário. Um mito. Um faz de conta. Um porventura de eras geológicas impressas nas estruturas de uma rocha frágil, de um fóssil réptil, de uma onda de informações que navega pela atmosfera e colapsa ao meu olhar radar. Uma lapso. Um fóton. Um sanduíche de queijo e presunto. Uma pessoa sem assunto. Um retrato que ficou no tempo. Uma pintura que se rasgou no vento. Um relato de um antepassado em uma carta que agora em uma gaveta se esquece. Uma linha que se esvanece. Uma herança. Uma unha que se quebra sob o soco violento. Um suspiroso lamento. Uma arrogância. Um acolhimento. Uma espada que fere. Uma esfera complexa de vida que agrega outras milhares de vidas em um sistema integrado, que gira em torno de outro sistema integrado, inexplorado, incompreendido, porém, corroborado. Um sol. Uma noite. Um recomeço. Uma morte em um dia de sorte. Um renascimento. Uma palavra correndo solta no tempo. Um transporte lento. Uma aventura em direção ao desconhecido infinito do impalpável futuro que sempre se anuncia, mas que nunca chega o seu momento. Tal qual horizonte que nunca se atinge, já que sua qualidade de ser linha futura no infinito nunca me permite, de fato, alcançá-lo – o futuro que comento. Um desejo que, assim como a linha inatingível, sempre permanece como motriz das ações humanas, imprecisas, imperfeitas, inconclusas, ansiosas, desgostosas – assim como em um tormento. Uma esperança. Uma folia. Um alento. Um berço que balança. Uma mãe que se cansa. Uma mão que roça na pança. Um talento. Uma série de pequenas alfinetadas que no fim de tudo…
No fim de tudo, o que significa esse fragmento?
Nestes aglomerados de acontecimentos indeterminados, tornados palpáveis através de conglomerados de moléculas e partículas que formam o infindável mundo invisível da matéria, a vida é dual, é transversal. A vida é multiespinhal. É ser e não ser. E ao escolher ser, continuar não sendo nas intensificadas camadas intrínsecas de cada esfera habitável, no possível improvável. É ser o que não se é como projeto da linha do horizonte que nunca se atinge, nunca se conquista, e por isso pode continuar não sendo palpável e sendo meta propulsora. Mas ao passo que ela se realiza no fator desejo da própria consumação, se torna realidade virtual no ser que a enseja, sendo não sendo, vendo não vendo, agindo não agindo. A vida é ser, não só na dualidade de tudo o que há no multiverso – se há frio é porque há geleiras. Mas embaixo das geleiras, escondidas em camadas profundas, coabitam lavas vulcânicas prontas para entrar em erupção e aquecer os gélidos corações que se asfixiaram na frieza pétrea da restrita percebida do ser. A vida é multiespinhal. E ser frio é não ser sendo todos os intermédios e os prelúdios da ação vulcânica.
Ser é descrer. É desfazer os símbolos, desmanchar os arquétipos. Tirar as manchas que borram as fronteiras e impossibilitam a visão da vida multiespinhal, livre. Ser é descer. Descer do trem que me leva pelos trilhos guiados, cansados, por caminhos tortuosos e planejados, coibindo os voos altos nos planos baixos que rastreiam superfícies insondáveis e mistérios inimagináveis. Descer é caminhar a própria trilha na imensidão de sentidos labirínticos do viver. Descer da própria vertigem que desfoca e provoca alucinações do ser estático, paralítico, amorfo, político. Ser é desviver, desentendendo, desinventando, despersonificando, desopinando, desclassificando, abrindo espaços inéditos, removendo os escombros sintéticos, movendo a tralha morfética, criando meios estéticos para o acaso agir ao meu favor e deixar-me estar a favor. É desmobilizar o acaso aprisionador.
Ser é tecer nas tramas implícitas do singular para designificar e pluralizar o valor.
A vida é esse complexo transversal de aglomerados inconexos, pulverizados, distorcidos, retorcidos, feios e bonitos, que se antagonizam e se harmonizam na construção e na destruição. Se chocam e se provocam em forças ainda não compreendidas, Divinas, supremas. A vida é a não vida, é a esperança de realizar a vida que se esconde no invisível, no insensível, no além mar, no além céu, além da imaginação. A vida é o paradoxo de conter e não conter, de ser cheio e ser vazio, na forma e na desforma, na glória e na derrota, com amplitude e restrição, magnitude e insignificância. Estar e não estar eis a convecção. Já que se eu estou aqui agora falando para você, eu também não estou mais aqui agora falando para você. Ou talvez nunca estive aqui ou sempre estarei. Onde estão as vozes do infinito? Que voz é essa que ecoa no silêncio de mim? Nos meus vazios, na minha solidão, quando não estou mais em mim? E enquanto aqui estou, em outros mundos, em outras vidas, também estarei. Pois os átomos que hoje estão em meu ser, já viajaram milhares de anos luz, percorreram milhares de outros corpos luz para agora estarem no ser que habito – até quando eu não sei. E depois habitarei outros que muito menos não sei. Mas em algum lugar eu já sei. Pois em algum lugar eu já sou lá, em algum lugar eu já estou lá. Então os milhares de seres que já foram habitados por estas mesma ínfimas partículas que hoje também habitam em mim, eles também estarão falando aqui em você.
Nessa vida, eu já fui. E já sendo o outro agora, sou o que nunca mais serei amanhã. Puro devir. Puro multiagir. Um estar que também é estar em muitos, em múltiplos, em nada, no todo, no acaso e na escolha, na vertigem e na vertical, na origem e na horizontal como uma onda cabal, de possibilidades quânticas, que eclodem na minha fronte, entre o tudo e o nada do aparente resplandecente ocaso, atrás de um simples monte, onde se esconde uma inesgotável fonte de conhecimento, uma ponte para o amem.
Namaste!
Flavio Graff
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