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Explorando a complexidade da identidade


Philippe Morillon | Andy Warhol (1977)



É melhor viver o seu próprio destino de forma imperfeita

 do que viver uma imitação da vida de outra pessoa com perfeição.

O espírito está além da destruição.

Ninguém pode pôr fim ao espírito, que é eterno.


Bhagavad Gita

 



Qual o real problema da nossa identidade?

 

A abordagem desta questão geralmente nos confunde quando tentamos entender e diferenciar os quatro fatores principais relacionados ao problema da identidade: quem somos, o que nos forma, o que aspiramos e o que nos define.

 

Quando paramos para analisar estes fatores, será que conseguimos estabelecer facilmente as distinções entre eles e entender onde está o problema? Ou será que por estarmos tão imersos no mundo da identificação, onde os padrões e os valores assimilados estão tão normatizados no nosso psiquismo, que já nem conseguimos mais discernir e separar o que realmente somos dos modelos que nos formaram? Conseguimos separar o que é aspiração da nossa realidade subjetiva consciencial daquilo que é definido pela imitação da realidade impositiva exterior?

 

Conseguimos fazer isso?

 

Será que é possível perceber quais das nossas aspirações são verdadeiramente nossas? Quais são do ego disfuncional e quais do Self integrado? Compreender quais dos nossos sonhos e ideais foram persuasiva e inconscientemente induzidos, forjados pelo mundo afora, habitando agora permissivamente o nosso mundo adentro e nos dirigindo inconscientemente?

 

Para analisarmos estes quatro fatores e responder a estas perguntas de maneira mais ampla, a abordagem do autoconhecimento e da autorrealização, segundo o ponto de vista transpessoal do Self, se faz necessária. Precisamos, aqui, nos permitir transcender as faixas restritivas dos conceitos de identidade materialista, centrada no ego, que envolvem diretamente a questão do pertencimento e da busca por aceitação. Só assim poderemos chegar à resposta mais aprofundada, longe dos clichês do identitário que gera em nós compreensão vulgar da questão, assim como série de conflitos existenciais.  

 

Quem somos?


 

A realidade é que não somos o que a visão materialista nos identifica com: o corpo físico - este aglomerado de células em constante renovação, que nem mesmo ele se mantém igual durante a vida. É nessa cápsula impermanente que temporariamente estagia o que realmente somos: o Self ou a consciência superior – o ser espiritual. Contudo, nossa cultura materialista insiste em corroborar que a consciência é somente uma manifestação causal da matéria, mesmo com todas as pesquisas científicas nunca tendo sido capazes de encontrá-la no cérebro humano.


Partir da identificação com aquilo que não se é nos leva a um entendimento distorcido do autoconhecimento e da autorrealização, que passam a ser vistos como empreendimento da consciência menor - do ego, e não do Self.

 

Nos reconhecermos como aquilo que está sujeito a finitude

é o ponto de partida para todo o problema da nossa identidade.

 

Somemos a isto, o consequente apagamento e a negação da consciência superior. Nesse processo de negligência do Self, o corpo, que deveria apenas servir como meio para o desenvolvimento da consciência, identificado com o ego, passa a assumir um papel que não é seu – o de legislador soberano. Transformamos, assim, essa faceta menor da consciência em uma bomba relógio de emoções, sentimentos e ações que vão se desajustando e que nos levam aos comportamentos neurótico-obsessivos e aos múltiplos distúrbios psicológicos.

 

Vamos entender o porquê?

 

Esta perspectiva acachapante, gerada pela autoimagem distorcida e paradoxal do ego, primeiramente nos desvia do entendimento lúcido dos objetivos da autorrealização. Em outras palavras, elas nos impede a compreensão integral de nós mesmos e de nossos propósitos. Com isso, ela nos impulsiona a buscar autorrealização onde ela jamais se concretizará, nos levando à frustração.

 

O problema surge exatamente quando o foco do indivíduo passa a ser unicamente o da realização das necessidades do corpo – da sua sobrevivência, segurança, procriação e das sensações, o que nos retém no nível do automatismo animal – no instinto. Dessa maneira, as realizações humanas passam a ser todas direcionadas pelas faixas restritivas desse ego-instinto. As atitudes são pautadas por tudo aquilo que o ser deve aparentar diante do mundo em vista de prover-lhe um lugar de pertença, garantindo-lhe, assim, os fatores primordiais para sua sobrevivência e segurança. É dessa maneira que o ego passa a dominar, em detrimento do desenvolvimento da consciência superior. Com isso, nossos propósitos, ideais, sentimentos e equilíbrio ficam todos à deriva.

 

É possível alcançar paz e felicidade assim?

 

Neste mal entendimento do nosso Eu, o apego ao mundo transitório e a ansiedade emergem como consequência da batalha entre o ego disfuncional e o Self negligenciado. Nesse embate, a relação entre o que passou e o que está por vir se torna angustiante. Por não aceitarmos a efemeridade do que não somos e na inconsciência do que se é, o medo da morte surge avassalador, já que ela ameaça a sobrevivência e segurança do ser.

 

Ficamos, então, na luta desesperada que tenta impedir o inevitável - a morte do corpo. O apego às circunstâncias passa a se fazer brutal, como se esse apego fosse capaz de aplacar a falta de controle do ser diante da transitoriedade da vida material. Vivemos, assim, como se o transitório fosse para sempre, estimulando constantemente as sensações e o prazer físico para mascarar a situação. Através de artifícios da vida banal, criamos estratégias de poder, controle e posses - do mundo, das coisas e do outro, na tentativa neurótica de obter e manter o prazer, em um se iludir desse inevitável encontro. Tentamos driblar, assim, o tédio que assola a consciência humana negligenciada, buscando alívio na excitação fugaz que nos distrai.


No entanto, o que acontece é que todo esse estado de excitação, dispersão e euforia que promovemos, por ser de caráter efêmero, mais nos tira do eixo do que gera prazer, satisfação e felicidade. Na verdade, a consequência é que abrimos as portas para o surgimento dos comportamentos compulsivos, dado que a brevidade do estado de excitação e euforia necessita sempre de mais, para que seja possível sustentar a máscara que cobre a face oculta e esvaziada de nós mesmos. Temos como resultado a frustração de todos os nossos esforços. A busca por autorrealização através de uma consciência limitada se torna, assim, afligente e paradoxal – eu quero atingir o meu melhor, mas ao mesmo tempo ignoro quem é o meu melhor.

 

Alinhando outras consequências

disfuncionais do processo de identificação.


Joan Jonas: Mirror Piece I & II

 

A aversão a tudo aquilo que é diferente, o que não pertence ao grupo eleito, é um mecanismo de autodefesa do ego que pretende rechaçar tudo aquilo que reflete as sombras não reconhecidas do Self – tanto seus vícios quanto suas virtudes. Por isso, quanto mais nos identificamos com os grupos e nos definimos por bandeiras e partidos, mais preconceituosos, inflexíveis e excludentes nos tornamos.

 

Adicionamos a este quadro o conceito utópico de que é a juventude e sua beleza que nos mantém vivos e poderosos, desejados e amados, no notório complexo de Dorian Gray. Os mórbidos procedimentos estéticos passam, então, a dominar os mercados, na tentativa de enganar o tempo e a nós mesmos, como se pudéssemos ludibriar a morte, sem saber que quem está morta é a própria consciência. Como sarcófagos, por fora nos exibimos com opulência divina, adornados com ouro e pedras preciosas, mas, por dentro, estamos mumificados. O envelhecimento se torna, assim, um golpe fatal para essa imagem sarcofágica do ego, que ao perder o seu esplendor, não encontra nada em seu interior, se desesperando.

 

E a sabedoria, vale para que?

 

Afirmamos nessa conduta que a sabedoria da experiência de vida não tem valor algum. O que vale mesmo é a manutenção da aparência externa jovial e seus atrativos físicos, obsessiva e neuroticamente mantidos, já que eles se tornaram ferramentas de poder que escondem a nossa sombra. Na busca de validação, usamos esta ferramenta para controlar o olhar e o desejo do outro, manipulando através da beleza e da sensualidade. Só assim nos sentimos importantes. Este comportamento, no entanto, caminha de mãos dadas com a nossa imaturidade psicológica, deflagrando as atitudes e anseios infantis de uma consciência adormecida que não se libertou de seus medos nem muito menos de suas ilusões.

 

O problema é que os processos de identificações exteriores nos levam à essa constante fuga de nós mesmos. Eles podem até dar a impressão de amenizar o confronto com os medos e anseios à sombra. Mas não. O ego debilitado passa a exigir reconhecimento incessante, já que nos sentimos vazios e carentes diante da falta de cuidado e cultivo de uma vida interior, visto que o foco ficou somente nas necessidades do instinto. Mesmo com todo o poder que possuímos e o prazer facilitado através dele, nunca estamos satisfeitos, já repararam isso? Essa debilidade é o resultado do desconhecimento de nós mesmos, que encontra na carência sua inquietante guarida.

 

O apagamento do Self

nos coloca em nebulosa

busca de controle externo.

 

A consciência à deriva não tem como se sentir plenamente integrada, saudável, precisando de constante validação exterior. A necessidade de ser gostada, vista, aplaudida, se conecta intimamente ao complexo de culpa como consequência da baixa-autoestima, originada na consciência em estado de sono profundo. Sem saber o seu valor, implora por amor.

 

A plenificação do ser em seu processo de atualização e autorrealização está totalmente comprometida dentro desta realidade patológica. A satisfação dos anseios, corrompida pela ideia das recompensas imediatistas, é vendida pelos anúncios sedutores que prometem a euforia e o deslumbramento, mas que se mostram tão afligentes na sua conquista quanto são de curta duração.

 

Todo esse quadro se revela de consequências drásticas para o psiquismo humano. Como resultado, vemos dilemas emocionais crescendo a cada dia: depressões, síndrome do pânico, transtornos de ansiedade, altas taxas de suicídio, ganância, inveja, guerras e disputas, assim como a alarmante crise de overdose, com recordes de mortes anuais, principalmente devido ao uso de opioides, afetando comunidades e sobrecarregando o sistema de saúde pública.

 

O colapso que está fora reflete

o caos que estamos por dentro.

 

Apesar de todo o conforto e segurança material que a tecnologia e modernidade nos promove, a paz íntima não nos parece possível. Esgotados os efeitos das sensações momentâneas das conquistas do ego, os sentimentos de incompletude, incongruência, inadequação, inquietação e alienação se apossam de nós. Assumimos, assim, que a melhor maneira de encarar tudo isso é estarmos anestesiados diante da realidade para suportarmos a dor do desencontro com a própria essência. Escolhemos viver dessa economia neurótica, em um sustentável utópico, sob o uso indiscriminado de medicamentos, dos alcoólicos e drogas, na obsessão pelo sucesso e juventude, movidos pelo consumismo frenético da sociedade do descartável, onde o lucro está acima de tudo e a saúde mental abaixo de todos.

 

Outra subsequente implicação que assola a sociedade está no método de produção industrial em massa, criado para manter as necessidades desse comportamento compulsivo, e que vem promovendo o colapso sistêmico-ambiental em escala mundial.

 

O que nos forma?


 Tilda Swinton | Fabio Lovino


O processo de formação de quem somos, baseado no conceito de identidade, leva, então, o identificado a se espelhar na matéria e no outro, copiando a sua forma. Esse é o fator preponderante que nos garante o pertencimento ao grupo, como vimos. É esse comportamento que condiciona o foco da nossa formação na construção de uma identidade sólida, inabalável, alicerçada nos padrões e crenças das heranças sistêmicas – culturais, familiares, político, religiosas, entre outras. Estes valores identitários se tornam, assim, inquestionáveis, irracionais, ao mesmo tempo que são castradores da voz interna - da nossa vocação. Portanto a nossa formação está comprometida com a necessidade de pertencimento aos grupos, onde a identificação tem papel fundamental para nos garantir acesso e inclusão, mas nunca autorrealização.

 

O sufocamento dos grupos

 

Cada grupo carrega suas regras de padrões identitários, enquadrando e formatando seus integrantes, criando um todo homogêneo, sem questionamentos, excluindo e apagando todas as formas singulares de expressão. E é exatamente o medo da exclusão que nos faz repetir o modelo. Isso nos custa, porém, o nosso próprio destino, assim como a felicidade e a paz do nosso autoencontro, adiadas pela imitação. É um sistema de formação opressivo, nada saudável, pois que o recalque da consciência superior à sua sombra leva ao desajuste do ego, logo se tornando disfuncional. É como se constantemente faltasse a peça-chave para desvendarmos o nosso quebra-cabeça.



 O surgimento do processo

de autossabotagem


Sabemos que toda opressão, interna ou externa, gera revolta, frustração, raiva, mágoa, rancor e impulso de vingança. Sabemos também que toda energia criativa reprimida, não canalizada para o autoaprimoramento, se transforma em energia destrutiva e que, em algum momento vai explodir. Na anulação da individualidade, em nome deste pertencimento, as vontades passam a ser condenadas a gravitar em torno das normas e sonhos “do outro”. O sucesso do ego passa a buscar no perfeccionismo forma de corresponder às projeções do grupo e receber as devidas recompensas. Sem capacidade de se autoafirmar e direcionar seus anseios e ideais, o ego que copia está fadado a incompletude e a frustração, potencializando, assim, a energia autodestrutiva.

 

Adoecemos.

 

Explorar o mundo subjetivo profundo é fundamental, portanto, para o sucesso da desidentificação e individuação. É vital perceber que as regras rígidas nos enclausuram o poder de reflexão, que a informação retira o nosso poder de discernimento e nos deixa na superfície de nós mesmos, que o dogmatismo gera fanatismo e paixão, levando à descentralização e desatualização. E acima de tudo, que viver o sonho e ideais do outro é um cemitério de ilusões e desejos frustrados.

 

Um passo para o abismo.

 

Nossa identidade é ritualisticamente formada através das vozes exteriores impressas milenarmente nas imagens arquetípicas do inconsciente - coletivo e individual. Medos, anseios, desejos, crenças limitantes, fantasias, alegorias, gestos, um arsenal de figurações enraizadas em processo de formatação maquinal, sem espaço para questionamentos, gerando nossos automatismos, moldando nossos gostos e conduzindo nossas aspirações. Aprender a dissociar o que é nosso do que não é, incluindo o rol de crenças e sentimentos sistêmicos, rompendo com hábitos milenares, passa a ser tarefa hercúlia. Desejos e vontades estão tão defendidos em nós como verdade que passaram a ser o: eu sou assim! A compreensão crítica de que esta identidade nos mantém estagnados em verdades rígidas sobre nós mesmos, e que ela tem muito pouco de nossa, que foi formatada pelo exterior para cabermos no lugar onde nos fizeram acreditar que devemos estar, é crucial para o autodesenvolvimento.

 

Do contrário, esse processo nos transformará em mero conglomerado esquizoide, reflexo do espelho vazio das aspirações sem singularidade, absorvidas sem senso crítico, honradas como absolutas, transformando-se em corpo androide a vagar pelas ruas usando emoções emprestadas, verbalizando pensamentos comprados em meio ao barulho do caos urbano, que só quer mesmo nos distrair e confundir ainda mais.

 

Será que as vozes que ecoam

internamente vem da nossa consciência?

 

Diante desse contexto, nos perguntamos: quais são os desejos e vontades que buscamos atender ao direcionar nossas vidas? De onde vieram esses desejos? São eles autênticos? Estão servindo ao propósito superior? Ou será que estamos apenas honrando o outro, nos apegando aos padrões, criando identificação limitante entre o Eu e o Outro, nos restringindo, dispersando o foco e nos tirando a paz?

 

Somente a partir de questionamentos sinceros e profundos é que poderemos deliberar se as intenções e aspirações que impulsionam as nossas ações estão realmente atendendo ao processo saudável de formação da consciência, seus deveres e responsabilidades. Somente assim poderemos nos alinhar com os verdadeiros propósitos de formação do nosso Self.

 

Singularidade X Identidade

 

Somente ao compreender a singularidade de cada um de nós, a percepção do que realmente somos se expande, nos permitindo compreender que aquilo que nos forma não é, nem nunca será, o outro nem muito menos o mundo externo. Cada qual consigo mesmo, no seu processo criativo interno de autodescoberta, que deve se alinhar às leis universais – ao Dharma. Desidentificar-se é, portanto, essencial para permitir que a consciência, que sobrevive ao corpo, se liberte das castrações, se distanciando das angústias e ansiedades impressas na necessidade obsessiva de validação do grupo, da correspondência, do reconhecimento do outro, dos sentimentos de mágoa e vingança por não sermos vistos como somos.

 

 

O que aspiramos?



A realidade social que criamos hoje em dia não nos ajuda nesse entendimento, já que constantemente reafirma o contrário. O foco das aspirações humanas, em sua grande maioria enquadrado pela ótica materialista de uma economia de mercado, almeja o controle de tudo aquilo e aqueles que o dinheiro possa comprar. Neste contexto, é o poder que garante o acesso ao prazer e ao orgasmo de estar no topo. O resultado fatídico desta conduta é o egoísmo. Aqui, o interesse humano não está no que pode gerar bem-estar social, mas no que move a máquina do estado corporativo neoliberal, interessada no lucro. Para atingir esse fim, o melhor recurso que estimulamos é o da competição. Convertemos, assim, a realidade social em campo de batalha massificado, onde a luta pelos interesses pessoais e a conquista do primeiro lugar se tornam imperativos legais que fazem a economia e o mundo girarem!

 

Nesse campo social dissolvente se estabelece a confusão mental e emocional. Passamos não só a nos imitar, mas também a digladiar, para eleger quem se destaca no meio da multidão de incautos. Neste processo neurótico, a felicidade do eleito custa a infelicidade dos 99 fracassados. Mas este eleito é vencedor do que? De uma aparente superioridade? Provavelmente se sente tão inseguro quanto incerto de merecimento.

 

A fragilidade do Self é deflagrada

pela necessidade de validação externa.

 

O projeto identitário da cultura materialista conspira para que não estejamos plenos de nós mesmos, garantindo que não nos rebelemos nem quebremos padrões, ao mesmo tempo em que nos mantém presos à batalha competitiva. Já que não sabemos o nosso próprio valor, nossa consciência precisa se afirmar ferozmente, convencendo o mundo de que somos melhor do que o outro. Este mecanismo nos deixa reféns de uma economia de mercado que se satisfaz em vender a pseudo-felicidade dos prêmios, sem nenhum senso estético, pois que está esvaziada de ideais superiores.

 

 A cultura do ego pode até satisfazer as personalidades infantis, que se sentem poderosas com as recompensas instantâneas, por terem cumprido bem o papel exemplar de clone social ou terem possuído o outro, mas, a longo prazo, não se sustenta. Ficamos desesperados correndo atrás de folha ao vento. O fato é que essa cultura não está preocupada com a sustentabilidade das emoções, dos sentimentos, nem muito menos do psiquismo de ninguém, já que seus objetivos se baseiam na venda de produtos que enganam e viciam. Sim, é preciso investir na construção de consciências tristes para que elas continuem viciadas, comprando as ilusões de satisfação dos produtos do mercado, gerando incalculáveis lucros para seus CEOs.

 

Temos, assim, um perfeito projeto social fadado a autodestrutividade, movido pelo consumismo compulsivo, que cada vez mais deixa claro o seu desequilíbrio – tanto psíquico quanto ecológico. A realidade é que essa insustentabilidade do ser contemporâneo competitivo está nós afogando. Nos afogando em lágrimas de corações angustiados, em mentes ansiosas, depressivas que humilham o outro, exalando os tóxicos detonadores do Espírito: a inveja, o ciúme e o ressentimento.

 

Como é possível vivermos em paz assim?

 

Na luta em busca de realização pessoal, nos perdemos nos enredos criados por nós mesmos. Estamos profanamente afundados nas vozes exteriores e padrões que repetimos roboticamente, diante de aspirações mesquinhas e ambições medíocres para manter o estado das coisas como estão. A longo prazo as consequências têm sido desastrosas, com o uso indiscriminado de psicotrópicos para manter a consciência em descompasso controlado.

 

As aspirações do Self ficaram tão dissolvidas no turbilhão das promessas ilusórias, de satisfação garantida dos sonhos dourados da vida perfeita do outro, que vivemos angustiados. Achamos que vamos encontrar o pote de ouro no final do arco-íris, sem saber que o pote está dentro de nós. Nos deixamos entregues às realizações externas, que parecem de mais fácil aquisição e brilho, já que descer é sempre mais fácil do que ascender na consciência. Para isto é preciso trabalho e esforço contínuos de perseverança, paciência, renúncia e autoestima. A perseverança nos mantém firme na busca, enquanto a paciência nos faz entender que a busca tem a sua própria música. Já a renúncia nos faz deixar de lado o nosso ego soberano, enquanto a autoestima nos conecta verdadeiramente com nosso senso de valor íntimo, com a coragem e a humildade, nos permitindo autopercepção e autodesenvolvimento consequentes. 

 

 

O que nos define, então?



A consciência humana só vai alcançar autorrealização equilibrada, paz interior, quando exercer a sua potência plena, sem os artifícios da cópia de padrões, da imitação do outro, do uso de valores uniformizantes da moda, do sufocamento da individualidade, da enaltação do ego disfuncional ou da necessidade de legitimação.

 

Cada consciência, como potência individual singular, está em busca da autorrealização dos valores universais. Estes podem ser sintetizados em: o ideal de sermos humanos através das aspirações superiores que elevam o espírito à suas virtudes e sabedoria; na de sermos bons, justos e fraternos; sermos amorosos sem condições, apegos ou aversões; sermos inteiros e não pela metade; e unos sem a heresia da separatividade. Só assim o medo da morte cessará, pois que tudo que é virtuoso não pode ser tocado pelo tempo. É eterno.

 

Será que conseguimos juntar

todas essas qualidades em nós?

 

Essa deve ser a busca sustentável da consciência integral. Mas para que ela se torne possível, é necessária a busca interior, individual e consequente, para atingirmos a construção singular de nós mesmos, não pautada nos roteiros cansados, receitas clichês, fórmulas mágicas, nem muito menos nas recompensas e prêmios baratos, ou no recurso fácil do identitário – essa máscara rígida e cruel que engessa a personalidade e paralisa a nossa consciência. É neste contexto que a potência do livre arbítrio emerge nos colocando diante da construção da nossa individualidade autônoma, nos afastando dos algozes castradores da singularidade. Mas, para isso, é preciso ter coragem para nos enfrentarmos e nos expressarmos de maneira pacífica e honesta.

 

Quando deixamos de ser escravos

dos instintos e das paixões, nos tornamos livres.

 

Ao barganharmos com a própria individualidade pagamos o preço alto com a nossa infelicidade. O conflito interno entre o processo de identificação e a negligência da voz interna – o vocatio – é inevitável. De origem latina, o termo vocatio foi usado originalmente em contextos religiosos e filosóficos para indicar um chamado divino ou uma inclinação interior para uma determinada missão ou propósito de vida. Na língua portuguesa, vocação mantém esse sentido de chamado, referindo-se a uma inclinação natural que leva alguém a seguir uma determinada profissão, missão ou estilo de vida. Essa ideia de um chamado interno é frequentemente associada a talentos, aptidões ou desejos que uma pessoa sente como sua verdadeira missão.

 

Nesse contexto, a busca pela definição da nossa consciência não tem como ser governada por imperativos outros que não os do ser diante de si mesmo, despertando da consciência de sono profundo e reconhecendo a sua verdadeira natureza, para além do automatismo do instinto animal. Somente neste momento é possível entender que aquilo que nos define são as nossas escolhas, para construirmos a nós mesmos independentes dos ditames do meio, em alinhamento com a consciência universal.

 

Quais são nossos propósitos de vida, então?

 

Muitos de nós vivemos confundidos e perdidos sem saber para onde ir, tamanha confusão gerada pelo conflito entre a identidade e a individualidade – qual escolher? Qual honrar? Sem querermos ponderar e nos comprometer com a devida resposta, compramos a de apelo e gratificação instantânea que agrada ao todo. Renunciamos, assim, à nossa vocação, deixando a definição de quem somos na mão de qualquer um. Não nos enganemos, as recompensas que daí provém são todas ilusórias, já que terminamos tão vazios quanto frustrados.

 

Tardiamente descobrimos, porém, que a fixação na identidade e o foco na aquisição material, assim como nas conquistas reverenciadas nos palcos da ilusão, não promovem autorrealização nem trazem equilíbrio psíquico-emocional sustentável. Toda essa confusão se transforma em tortura para a consciência, pois intimamente ela sabe qual deve ser sua busca, mas não tem coragem de assumir sua própria individualidade.

 

E onde fica, então, a tão desejada felicidade?

 

Os nossos medos e desejos podem nos trair. Mas é preciso entender que não há como haver felicidade sem o desenvolvimento dos valores, virtudes e sabedoria do Espírito imortal.  É preciso estar atento e forte contra as falácias de um ego perspicaz que se satisfaz facilmente com migalhas de amor.

 

E na busca de atualização, onde está, portanto, o foco de autorrealização da sua vida? Está no identitário do efêmero-ilusório da horizontalidade da matéria? Ou no duradouro vertical da consciência que sobrevive ao colapso do corpo efêmero?

 

Convidamos você a compartilhar suas reflexões, experiências e percepções sobre o tema! Adoraríamos ouvir o que você pens@!

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