Velhos mecanismos, novos disfarces
- flaviograff

- Sep 12
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Updated: Sep 13
Poder, estética e a máscara democrática no mundo das ilusões totalitárias neoliberais.
por Flavio Graff

Não é de essência a diferença entre as atuais democracias neoliberais e os regimes de outrora — do absolutismo ao imperialismo, do colonialismo às inquisições, do socialismo ao totalitarismo. O que muda é apenas o figurino histórico: ora a fé, ora a razão; ora o mito do progresso, ora a retórica do parlamento; ora o povo, ora o proletariado — trocam-se as máscaras, mantêm-se os velhos corpos.
O motor que faz girar a engrenagem política e social permaneceu o mesmo ao longo dos tempos: o ego humano em sua obsessão pelo poder. É esse fator corrupto, atravessando séculos e ideologias, que transforma promessas de liberdade, justiça e igualdade em novas máscaras de dominação.
Esse ego, em sua sede neurótica de poder, funciona como a gravidade: suga e distorce qualquer possibilidade de transformação real que tente nascer dentro do sistema. Não falamos aqui do poder capaz de nos elevar da debilidade humana — o poder da autorrealização. Falamos, sim, do poder já contaminado por concepções distorcidas de sua própria potência: o poder do egoísmo.
A percepção equivocada do poder gera a ilusão de que ele é capaz de resolver o paradoxo da incompletude humana em conquistas exteriores. Passou-se a acreditar que através da dominação e da subjugação de indivíduos, de culturas e riquezas, o ser incompleto conseguiria resolver o seu vazio emocional e psíquico. O poder lhe renderia, então, algo de mais valioso: o prazer.
A partir daí, consolidou-se no psiquismo humano o paradigma de que os sucessos das batalhas e as conquistas dos heróis renderiam glórias que não só permitiriam os vencedores sobreviver, mas viverem felizes e realizados. Contraditoriamente, tal estratégia, ao apoiar-se na energia irracional de sobrevivência, oblitera o fator fundamental para a felicidade: a paz interior.
Homens e mulheres se perderam nesse caminho ao longo dos séculos – conseguiram poder, prazer, mas não conseguem ter paz. Um paradoxo tragicômico. Isso por não terem percebido que a dualidade do psiquismo humano não se resolve na consciência que se negligencia se projetoando no outro. Somente naquela que se autoilumina e liberta. Também por não terem percebido que a paz não é conquistada sem o exercício da tríade ética – bondade, justiça e fraternidade. E que a violência exigida nos velhos mecanismos de manutenção de poder só pode mesmo atingir fins trágicos para todos os envolvidos, mesmo quando momentaneamente trazem satisfação e prazer.
O desejo e a sede de poder
À raiz da psique humana está o desejo, força que, quando alimentada pelo medo e pela insegurança, degenera através da impulsividade irracional em instinto de sobrevivência. O desejo sem a qualificação dos sentimentos amadurecidos e conscientes não só se torna obsessivo, mas perigosamente destrutivo. É inevitável, portanto, que este ser que não trabalhou a sua autonomia emocional termine por querer impor-se através do domínio da força e violência sobre o outro.
O desejo, dessa maneira, usa o poder para atingir o prazer. Já o poder instiga o desejo, atiça-o sem descanso, para mantê-lo preso na ilusão de prazer. E ambos usam a mente racional para justificar os absurdos das atrocidades genocidas e autocratas, com uma distorção da própria lógica. É a Roda de Samsara que produz e mantém sujeitos obedientes ou melhor, doentes. Servos de um único senhor: o desejo desqualificado.

É a insegurança humana de não ser validado, é o medo de não pertencer que aciona os mecanismos instintivos da raiva, da ira e da vingança. São eles que levam à subsequente compulsão pela dominação competitiva – ‘vou provar que sou superior e, assim, todos vão me respeitar e se curvar diante de mim’. E esse domínio se expressa não apenas através do poder material – da força bruta ou das riquezas – mas, sobretudo, através do poder psíquico e sexual. Afinal, a humanidade ainda acredita que medir poder é como medir músculos em um espelho de academia — só que em escala civilizatória.
A humanidade ainda não compreendeu, depois de milênios de história e barbárie, que uma sociedade pautada na competitividade está fadada ao fracasso.
O que a filosofia nos diz sobre o assunto?
Se no plano psicológico a sede de poder se revela como desejo compulsivo para superar os complexos, a filosofia nos mostra como isso se articula nas formas históricas de dominação.
Nos estudos de Hannah Arendt, famosa por sua expressão certeira - ‘a banalidade do mal’ – ao definir a condição da estupidez humana que prefere fingir que não se percebe movida pelas suas próprias sombras violentas - Hannah defende uma tese sobre os regimes totalitaristas do século XX. Ela dizia que o nazismo, o fascismo e o stalinismo traziam algo de inédito na história: a tentativa de dominação total da espontaneidade humana via terror permanente e ideologia totalizante. Essa perspectiva era ancorada por abordagem técnica moderna - burocracia, propaganda de massas, polícia secreta.
A tese de Arendt demarcaria uma qualidade nova do poder político: não mais punir ou converter, mas refazer o humano. Contudo, o filósofo Michel Foucault, em sua leitura genealógica, rebate este ponto dizendo que o que Arendt chamava de ‘novo’ era apenas uma variação de tecnologias antigas.
O confessionário do século XIII (ferramenta institucional de controle e dispositivo de verdade sobre si, instituída pela Igreja Católica) já preparava o terreno para sociedades disciplinares, reguladoras, segundo análise de Foucault. A estatística e o registro ampliavam-se em biopolítica; a administração dos corpos e das populações antecedia e excedia qualquer limite do totalitarismo clássico. Do púlpito às fichas da polícia, da penitência à vigilância: a mesma lógica de sujeição do outro, de controle dos corpos, apenas usando tecnologias diferentes.
Essa vontade de poder e o estímulo à idolatria é definida por Friedrich Nietzsche como a gramática do desejo de dominação - não como programa político, mas como diagnóstico das forças que organizam valores. A modernidade, que dizia matar Deus, reinstala ídolos (nação, raça, progresso). O nazismo não lê Nietzsche; distorce-o, usa-o como mito. Dessa distorção brotam a idolatria da bandeira, a retórica da superioridade racial e o religiosismo — formas de culto que sacralizam o político como identidade, assegurando as mais profundas inseguranças humanas.

Mas se Arendt vê ruptura e Foucault desenha a linha longa no contexto histórico, o filósofo contemporâneo Slavoj Žižek explica a adesão subjetiva. A ideologia não nos engana apenas; ela organiza o nosso gozo. A ideologia não é só mentira; é a forma como gozamos (o desejo em Lacan) a nossa crença. Mesmo cínicos, quer dizer “sei que é falso”, continuamos a agir como se fosse verdadeiro.
Esse seguidor “cínico” sabe das falhas do líder, mas prefere acreditar nas mentiras para manter a ilusão do seu próprio mundo de trevas e perversões — e o ritual estético (desfiles, estádios, bandeiras, timelines) sustenta o teatro de crenças encarnadas - patriota, verdadeiro e justo. Daí a atualização contemporânea: a democracia neoliberal funciona como um totalitarismo difuso — sem campos, confuso, polarizado, mas com um conformismo mercantil que gera um regime que disfarça muito bem a opressão em consumo e prazer.
A vigilância confessional é hoje distribuída coletivamente, controlada no território global onde as câmeras de celulares registram a cada minuto, as mídias sociais pedem depoimentos íntimos, os cancelamentos denunciam os ódios, as CCTVs policiam cada centímetro quadrado do planeta, enquanto a biometria faz o fichamento social, transformando tudo em permanente espetáculo, milimetricamente orquestrado, The Truman Show. Ao mesmo tempo, mantém e neutralizam a possibilidade de existência de qualquer outra alternativa de organização social.
A democracia neoliberal é a única que oferece a possibilidade de acesso ao poder e ao prazer, basta você competir e ser o melhor no que faz deixando os outros 99% infelizes com sua paz.
A Estética como tecnologia de poder
Se filósofos e psicanalistas nos mostraram como o desejo e a ideologia estruturam a dominação, é na estética que esse poder ganha corpo visível. De Roma ao barroco, de Speer ao feed, o poder encena-se, teatraliza-se, arquiteta-se. Roma transformou a arquitetura monumental em símbolo de autoridade e glória. A Igreja Católica usou o barroco para afirmar sua força e deslumbrar os fiéis em sua propaganda de fé e hegemonia como ferramenta da contrarreforma.
O poder sempre se aproveitou de valores estéticos como tecnologia para legitimar-se. Desde edifícios e cúpulas de templos em escalas monumentais, desenhadas para impressionar e ecoar os discursos dos lideres, até as telas gigantescas de pintores famosos, os grafismos e slogans com promessas de soberania e higienização coletiva do mal humano, a arquitetura com simbologia sublime sempre se impôs.
Hoje, essa liturgia desloca-se para outros palcos: os feeds digitais e os estádios de futebol. Estes últimos são talvez os templos mais emblemáticos da contemporaneidade, onde as massas buscam comunhão e sentido como outrora diante dos altares. Ajoelham-se para uma bola como nos genuflexórios de outrora, cantam hinos e seguem procissões seculares de torcida, e voltam para casa mais vazios do que saíram — acreditando ter tocado deuses ilusórios.
Da bola às telas, do estádio à timeline, a lógica é a mesma: a promessa de pertencimento e transcendência se converte em espetáculo. A estética se tornou o palco para os megaespetáculos político-religiosos, de tom operístico, tão trágicos quanto ilusórios. Ela é a tela contemporânea para os mais cobiçados reels de quinze segundos de fama, vendidos pelas big techs como as grandes conquistas culturais modernas. Do altar ao algoritmo, sempre o mesmo capítulo. A alta tecnologia permite viralizar conteúdos pelas redes sociais em segundos, pulverizando a estética grotesca e vazia do poder pessoal e difundindo a palavra mais barroca do momento – o empoderamento.
A estética da democracia neoliberal é toda manipulada através da ilusão do empoderamento. O espelho de uma sociedade narcisista de volta àquela velha ideia de que o desejo pode resolver o vazio através da completude ilusória do poder. E quanto mais seguidores, mais poder aos influenciadores. Quer dizer, a democracia neoliberal não só vende produtos no mercado internacional mantendo bilionários no comando, mas corrompe o ser que se sente empoderado com o que não pode ser.

Com a farsa do sentir-se pleno de si mesmo, o indivíduo compra uma promessa mítica de encontrar o seu verdadeiro eu, mas esse eu não passa de um true ego embalado como mercadoria. Como aquele que acha o pote de ouro no fim do arco-íris, a democracia neoliberal não cria novos mitos, apenas recicla velhos delírios para sustentar sua estética manipuladora de domínio.
Mais ainda: tem a capacidade perversa de absorver a própria crítica e devolvê-la como produto de consumo. O que nasce como rebeldia logo se torna estilo de vida, e o que era contracultura vira atração turística. O movimento punk, que proclamava o ‘do it yourself’ e cuspia contra a ordem, hoje desfila em camisetas de fast fashion e pacotes turísticos em Camden Town. Assim, o sistema não apenas tolera a dissidência — ele a promove, a compra, a recicla e a vende como mais um produto no mercado global de identidades.
Nessa engrenagem, até mesmo a contestação reforça a máquina de poder, e o indivíduo, acreditando-se empoderado, repete sem perceber o mesmo mecanismo confessional patriarcal que desde o século XIII controla corpos e consciências. Se acha tão dono de si que sustenta o fantasioso slogan: ‘meu corpo, minhas regras’. Sem perceber que esse corpo que se acha livre, rebelde, permanece objetificado pela política neoliberal confessional. Não, não se enxerga preso ao espetáculo narcisista manipulador das elites para as massas. Julga-se livre quando não tem a menor ideia do que liberdade significa.
Confesse! E será controlado e absorvido.
A democracia neoliberal, sua biopolítica pervertida, emociona, regula e disciplina. Cria o caos nas mentes, catequiza as sensibilidades, debilita o cognitivo, polariza as emoções, vulgariza a informação. Dados que logo se tornam tão dispersivos quanto inicialmente atraentes, dinamizados nos mecanismos viciantes de autoconsumo.
Walter Benjamin chamou isso de “estetização da política” (típica do fascismo). Uma estetização que hoje usa do mais apelativo e vulgar, denunciando a crise estética profunda em que vivemos – onde moral, razão e emoção não conseguem mais manter diálogo íntegro, belo. Não, não conseguem conciliar-se, fazer sentido, pois estão reféns de um desejo deslocado na busca inadvertida de resolver a incongruência do próprio ser esvaziado, debilitado. Sem solução, vemos o mundo atual pleno de revolta e indignação.
Hoje, a sociedade do espetáculo - usando o termo de Guy Debord - dilui o comício em trending topic: menos pedra, mais pixel; menos poder de cognição, mais intensidade na dispersão; menos compaixão, mais barulho na comoção. A política de hoje exalta o cancelar, o agredir, o protestar. Isso vende mais na mídia. Tudo faz parte, tudo o que despedaça o fator humano vira palco no circo dos horrores da biopolítica neoliberal. O jogo é muito bem formulado e repete a mesma função de captura do olhar e do corpo que as exuberantes escadarias clássicas do barroco faziam: manter fiel os olhares deslumbrados e hipnotizados dos espectadores incautos.
O espetáculo dos Deuses terrenos, sedentos de mando e injustiça, continuam a dispersar e confundir os ‘cínicos’, que fingem não ver as atrocidades cometidas por detrás das cortinas dos palácios adornados de ouro e rococós.
O palco do poder pode mudar, mas o enredo é sempre o mesmo: a democracia recicla a estética da dominação em novas e velhas ilusões.
Democracia e o novo vestuário da dominação

O fracasso da democracia não está em deixar de romper com os regimes dominadores, mas em mascarar-se como poder de todos. Quer dizer: totalitarismo, imperialismo e colonialismo não só não deixaram de existir, como se disfarçaram de liberdade de escolha — como se o eleitor tivesse realmente o poder de decidir quem governa ou como governa. Pior ainda: como se quem chega ao topo representasse os pensamentos e os direitos daqueles que abdicam do seu poder. Será mesmo?
Quando a violência estrutural se executa com assinatura do eleitor, a dominação torna-se autojustificada. Os dispositivos de poder de hoje - mercado, igrejas, mídia, segurança - encontram na retórica democrática uma máscara legitimadora para os mesmos desmandos perversos de sempre.
Vemos no Brasil, por exemplo, igrejas e pastores manipulando as mentes, tal como na catequese colonial, no puro intuito de eleger os seus patri-de-mônios. O velho empoderamento governamental através da fé cega controlando mentes fracas. E o resultado disso? Já sabemos: líderes que, pela via democrática, aplicam políticas excepcionais, totalitárias, genocidas, xenófobas, racistas e por aí vai. E do jeito que vai, vamos mal...
Vivemos e vemos (para os que conseguem ver) a queda do império global. Não há sustentabilidade para uma sociedade baseada na competitividade, na ideia de poder absoluto – este modelo está fadado ao fracasso. E hoje, o próprio meio ambiente denuncia a insustentabilidade das políticas neoliberais com o colapso das energias e do ecossistema. Mas políticos e chefes de estado preferem descaradamente negar. Continuam a vender a farsa do poder que assegura os inseguros de seus medos. Pensam em tudo. E não pensam em nada ao mesmo tempo. Apenas suas próprias ilusões. Continuam guiados pelos vazios de suas próprias existências.
E o que fazer com tudo isso?
Pensar que há uma “origem” do totalitarismo como evento, como definiu Arendt, nos tira a perspectiva maior da problemática humana. A problemática que sempre direcionou os desequilíbrios políticos e sociais desde priscas eras. A gramática pode até ter mudado (teo-política, biopolítica, info-política) e o cenário (basílicas, cúpulas, estádios, telas). Mas a essência é simplesmente a mesma — o egocentrismo dominador buscando justificativas para satisfazer-se implacavelmente.

A tarefa crítica de hoje não é escolher um figurino ‘menos pior’, votar no partido de esquerda, de centro ou direita, aquele que se alinhe mais ou menos com seus valores. Isso só mantém a mesma ilusão de ideologias e guerras ‘da minha verdade é melhor do que a do outro’. Assim, mais do que escolher entre velhos figurinos políticos, trata-se de desmontar o teatro inteiro da dominação.
A grande tarefa de hoje é desarmar as máquinas de adesão: onde se produz crença, onde se coreografa obediência, onde o gozo nos prende e anula a individualidade criativa, nos escraviza. É aí que se decide a política — com ou sem monumentos. E esse desmantelar se inicia em cada um, na percepção e na coragem de ser tranquilo, de ser ético sem precisar de leis que regulem o social, mas sobretudo na compreensão do poder de autorrealizar-se.
Quando isso acontecer não haverá mais necessidade de poder, de políticos, de estado, de segurança pública, de militares, de armas de destruição em massa. Se todos os regimes falharam porque se alimentaram de um egoísmo movido por medo e insegurança, talvez o que resta seja inventar um outro modo de viver, onde potência não signifique dominação e o medo não nos torne mais violentos.
Talvez surja daí aquela “comunidade de comuns” prenunciada por Giorgio Agamben — uma comunidade baseada na singularidade de cada ser e na sua abertura não definida por categorias fixas. Uma comunidade que vem não como programa, nem como sistema, mas como potência que é apenas potência por si só. Que nasce da diferença e da força de cada ser único, pacificado, afastando-se das estruturas sociais e políticas preexistentes — todas decadentes — e constituindo-se como exercício livre de ser. Aprendendo, enfim, a só ser — para, finalmente, viver em paz.





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